O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

quinta-feira, 29 de março de 2012

HOMENAGEM A MILLÔR FERNANDES (1923-2012)


Poeminha sobre o Trabalho




Chego sempre à hora certa, 
contam comigo, não falho, 
pois adoro o meu emprego: 
o que detesto é o trabalho. 

Poeminha sobre o Tempo

O despertador desperta, 
acorda com sono e medo; 
por que a noite é tão curta 
e fica tarde tão cedo? 

Poeminha de Insatisfação Absoluta

O que me dói 
É que quando está tudo acabado 
Pronto pronto 
Não há nada acabado 
Nem pronto pronto 
Pintou-me a casa toda 
Está tudo limpado 
O armário fechado 
A roupa arrumada 
Tudo belo, perfeito. 
E no mesmo instante 
Em que aperfeiçoamos a perfeição 
Uma lasca diminuta, ténue, microscópica, 
Não sei onde, 
Está começando 
Na pintura da casa 
E as traças, não sei onde, 
Estão batendo asas 
E a poeira, em geral, está caindo invisível, 
E a ferrugem está comendo não sei quê 
E não há jeito de parar. 


Poeminha Compensatório

Amigas, venham todas 
Tragam o sal, o sol, o som, a vida, 
O riso, a onda. 
Eu sou o Cavalheiro da Triste Figura 
Mas tenho uma bela Távola Redonda 

Saio sempre do cinema 
Com o sentimento desagradável 
De que, se não houvesse lido a 
Crítica, teria sido formidável! 

Poeminha Tentando Justificar Minha Incultura
Ler na cama 
É uma difícil operação
 
Me viro e reviro
 
E não encontro posição
 
Mas se, afinal,
 
Consigo um cómodo abandono,
 
Pego no sono.
 



Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"

quarta-feira, 28 de março de 2012

«O grande motor do romancista sempre foi o desejo de ser o outro». Tabucchi


«As câmaras da televisão chegam até ao fundo da rua, mas não são capazes de dar a curva. O lugar que compete à arte é olhar para trás da esquina».

Antonio Tabucchi (1943-2012)

segunda-feira, 26 de março de 2012

Pobres das Flores dos Canteiros


Pobres das flores dos canteiros dos jardins regulares. 
Parecem ter medo da polícia... 
Mas tão boas que florescem do mesmo modo 
E têm o mesmo sorriso antigo 
Que tiveram para o primeiro olhar do primeiro homem 
Que as viu aparecidas e lhes tocou levemente 
Para ver se elas falavam... 

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XXXIII" 
Heterónimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, 23 de março de 2012

o princípio de m. c. escher (II)

day and night - m. c. escher
é quando as aves brancas voam para a noite que
as aves negras voam para o dia, sobre as árvores, no vento, vão
em bandos, batem asas pausadas. sobre as árvores
as aves brancas tomam a noite clara, as negras,
apostas companheiras, escurecem o dia, voam baixo,
no ar para onde fogem ocupando o intervalo
das outras, e as brancas  cortam o espaço, exactas guias,
entre o voo das pretas. bandos, bandos
de oposto movimento, na luz de transição,
, onde se cruzam, voam
aves cinzentas para os dois lados, no lugar indeciso
em que das matérias do ar e da chuva
se elevam as árvores dessa parda fronteira, e
sobre todas as árvores da paisagem, da matéria da noite, deslocada
se formam as aves negras. as brancas giram altas e agudas, feitas
da substância do dia que transpõem. imitativo e permutante é o
voo das aves e aqui, nas caudas do vento, a terra estreita-se:
de passarem baixas as aves negras, todas
mudaves, negras, á cousas todas vás, á brancas
aves de suaves claves, ides tão acima dos graves
cuidados, das fundas soledades, vai tão fluido
o vosso sobrevoo, aves cinzentas sobre o vale pairando
equidistando do sol e da lua, tudo é tão transitório
e tão roubado ao tempo. á aves condutoras, sonora companhia, sois 
tema e contratema, resposta e episódio, espirais dissonantes
de rigor e liberdade, no bater das asas vás para cada lado
da fuga sobre os rios, sobre os silvos, sobre os vidros da paisagem, sobre
os cantos de ar e chuva, sol e lua, nas linhas enroladas de estridentes 
trinos, sois as nuvens, no sistema das aves, no manejo
das aves e das árvores cromáticas e tristes, a dupla revoada, o ricercare: é quando
as aves brancas voam para a noite que, no avesso,
voam para o dia as aves 

Vasco Graça Moura negras e , onde se cruzam, cinzentas.