O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

sábado, 30 de junho de 2012

A MÃE - ALMADA NEGREIROS
A invenção do dia claro (EXCERTO)

Imaginava eu que havía tratados da vida das pessoas, como ha tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que ha para os animaes domesticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que ha!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como ha hostias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hostia. Um livro pequenino, com duas paginas, como uma hostia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
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Não achas, Mãe? Por exemplo. Ha um cão vadio, sujo e com fome, cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter fome. Até as crianças já lhe fazem festas.
Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si–não saber cuidar de si é ser cão.
Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma arvore! quando ha uma arvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
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Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar.
Como o livro, as pessoas tinham principio, meio e fim. A principio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada do livro de me ter estendido a mão.
Talvez que nos outros livros… mas os titulos dos livros são como os nomes das pessoas–não quere dizer nada, é só para não se confundir…
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Sonhei com um paíz onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em seguida, fabricava desde a materia prima o papel onde ia assentando as confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chócos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da arvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
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Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa–salvar a humanidade.


segunda-feira, 25 de junho de 2012

VIAGE PARA ALÉM DAS FÉRIAS!


Retrato do Herói

fotg. ?

Herói é quem num muro branco inscreve 
O fogo da palavra que o liberta: 
Sangue do homem novo que diz povo 
e morre devagar    de morte certa. 

Homem é quem anónimo por leve 
lhe ser o nome próprio traz aberta 
a alma à fome    fechado o corpo ao breve 
instante em que a denúncia fica alerta. 

Herói é quem morrendo perfilado 
Não é santo    nem mártir    nem soldado 
Mas apenas    por último    indefeso. 

Homem é quem tombando apavorado 
dá o sangue ao futuro e fica ileso 
pois lutando apagado morre aceso. 

Ary dos Santos, in 'Fotosgrafias'

quinta-feira, 14 de junho de 2012

ESCUTA ZÉ NINGUÉM!

Escrito em 1945, Escuta, Zé Ninguém! foi o resultado de tumultos e conflitos íntimos de um cientista e pensador profundamente inconformista. Lido por milhares de leitores ao longo de várias gerações Escuta, Zé Ninguém!, é ainda hoje um livro de reflexão importante. 

«Terás de entender que és tu quem transforma homens medíocres em opressores e tornas mártires os verdadeiramente grandes; que os crucificas, os assassinas e os deixas morrer de fome; que não te ralas absolutamente nada com os seus esforços e as lutas que travam em teu nome; que não fazes a menor ideia de quanto lhes deves do pouco de satisfação e plenitude de que gozas na vida.»

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Não Há Vício que se não Esconda Atrás de Boas Razões

LE CHIEN ANDALUZ - FILME DE LUIS BUNUEL E SALVADOR DALI
Não há vício que se não esconda atrás de boas razões; a princípio, todos são aparentemente modestos e aceitáveis, só que a pouco e pouco vão-se expandindo. Não conseguirás pôr fim a um vício se deixares que ele se instale. Toda a paixão é ligeira de início; depois vai-se intensificando, e à medida que progride vai ganhando forças. É mais difícil libertarmo-nos de uma paixão do que impedir-lhe o acesso. Ninguém ignora que todas as paixões decorrem de uma tendência, por assim dizer, natural. A natureza confiou-nos a tarefa de cuidar de nós próprios, mas, se formos demasiado complacentes, o que era tendência torna-se vício. Aos actos necessários juntou a natureza o prazer, não para que fizéssemos deste a nossa finalidade mas apenas para nos tornar mais agradáveis aquelas coisas sem as quais é impossível a existência. Se o procuramos por si mesmo, caímos na libertinagem. Resistamos, portanto, às paixões quando elas se aproximam, já que, conforme disse, é mais fácil não as deixar entrar do que pô-las fora. 

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'