Um retrato de costas. Encontro este retrato numa velha gaveta. Casa antiga. Fechada. Há quanto tempo fechada por dentro? Casa dentro da cidade. Sala dentro da casa. Armário dentro da sala. Gaveta dentro do armário. Retrato dentro da
gaveta. Retrato de costas. Costas sem peito visível. Onde estarão os olhos? E terá mesmo olhos? E o corpo terá mesmo volume? E matéria? Ou será só costas, uma superfície escura, uma mancha levemente curvada a indicar os ombros? Ou a pergunta escondida? Onde estará o peito? Virado para lá ou só costas do lado de cá? Onde aí estarão os olhos? Que profundidade contemplarão? Que espaço construirão? E, a que voltará as costa esse peito? Do lado de cá a escuridão da mancha das costas na fotografia. Mas que saberão os olhos que eu não vejo das costas que impressionaram esta velha chapa fotográfica? Que saberá esse peito do meu peito? Que verão esses olhos dos meus olhos que agora interrogativamente observam as costas negras do peito que nunca poderão ver? Será o espaço das costas tão só imaginário como parece ser o espaço do peito? Serão mesmo estas costas a fronteira, o limite entre o real e o imaginário? Ou será afinal só uma velha fotografia dentro da gaveta. Gaveta dentro do armário. Armário dentro da sala. Sala dentro da casa. Casa dentro da cidade. Cidade dentro do País. País dentro do Mundo. Mundo dentro do Universo. Universo em que as noções de costas e de peito são tão relativamente relativas que só no meu peito e nos meus olhos vejo realmente as costas negras deste retrato de uma pessoa que desconheço e que poderia talvez até ser eu próprio.
in Antologia para inici-antes de E. M. de Melo e Castro.Editora Ausência, Porto, 2003.
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