O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

SEBASTIÃO DE ALBA

SEBASTIÃO ALBA (Dinis Albano Carneiro Gonçalves), (Braga, 1940 - 2000), ilustre escritor naturalizado moçambicano. Pertenceu à jovem vaga de autores moçambicanos que vingaram na literatura lusófona.
Viveu alguns anos em Braga e em 1950 foi com a família para Moçambique onde se radicou. Em Moçambique formou-se em jornalismo, leccionou em várias escolas, e contraiu matrimónio com uma nativa.
Publicou, em 1965, Poesias, inspirado na sua própria biografia. Um dos seus primeiros poemas foi Eu, a canção. Os seus três livros colocaram-no numa posição cimeira no ambiente cultural.


Voltou a Portugal em 1984. Teve uma curta experiência em Lisboa com a família, que lhe aumentou a sua tendência anti-social e regressou a Braga só, isto é, sem a mulher e as filhas. Optou definitivamente por um tecto de estrelas, depois de curtas estadas em quartos arrendados. Como parceiros de vida o álcool, a música e a poesia. A Antena 2 e uma harmónica de boca alimentavam-lhe a melomania; o álcool, sempre dissimulado num saco de plástico, entorpeceu-lhe a voz da consciência; a poesia embalou-o no sonho idealista de submeter o mundo à ordem musical.

Figura controversa, por teimosamente rejeitar qualquer oferta de protecção ou abrigo, por ser bêbado, provocador e incumpridor contumaz das normas sociais: foi atropelado fora de uma passadeira. Era um ser desprendido, dava o pouco dinheiro que tinha a mendigos ou vadios, sendo ele mesmo um mendigo de grande dignidade, só aceitava actos de caridade contra actos de gratidão: tocava peças musicais ou oferecia poemas a quem o ajudava. Até os 1.500 contos do Grande Prémio ITF deu às filhas.
Faleceu com 60 anos, atropelado numa rodovia. Deixou um bilhete dirigido ao irmão:
«Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá».

há poetas com musa. Muitos.

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.

ninguém, meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos

um anjo erra (o amor confuso)

Um anjo erra
nos teus olhos diurnos

humedecido do véu
(ao fundo, a íris entardece)
seguiu de cor a revoada das pombas

místico
um arroubo ascende a prumo
do plano em que me fitas

cisnes desaguam
do teu olhar em fio
e vogam ao redor, pelo estuário da sala

ao sol-poente
os vitrais das janelas
ardem na catedral assim erguida

colocamos um sonho
em cada nicho

e no círculo formado pelas nossas bocas
subentende-se com verve
a língua.
certo de que voltas, canção (o amor confuso)

Certo de que voltas, canção,
a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.

Sei, por sinais e anjos e desviados,
que rebentas dos sonhos desolados
em flores no chão.

Apenas flores, nem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.

Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.

a um filho morto

Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida

Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.

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