O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

POEMAS - FERREIRA GULLAR

NÃO HÁ VAGAS
.
O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço
do arroz
não cabe no poema.
.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
.
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"
.
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
.
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
*
MADRUGADA
.
Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite
a noite ocidental
obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes
*
EXTRAVIO
.
Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
.
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfacto,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.

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