O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

POEMA EM LINHA RECTA - ÁLVARO DE CAMPOS


POEMA EM LINHA RECTA
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Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
s.d.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa.

UMA INTERPRETAÇÃO PESSOAL -Álvaro de Campos, neste poema fez uma crítica social de forma irónica porque percebia as mazelas da sociedade da sua época e que hoje são tão actuais. Colocando-se crítico em relação a si próprio interroga o leitor pedindo respostas. Apresentando-se por meio de adjectivos pejorativos. Quando diz “tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas”, declara que foge das etiquetas que a sociedade impõe, não dá importância para as convenções sociais que exigem regras das pessoas ditas civilizadas. O poeta ironiza com os que contam só as vantagens da vida. A essência do poema é a denúncia sobre as pessoas falsas e hipócritas. No poema Álvaro de Campos compara-se à maioria para definir-se como diferente. Quando afirma que nunca conheceu quem tivesse levado "porrada", declara-se vítima desse acto violento cujo sujeito é a própria existência, ao mesmo tempo que enfatiza o comportamento comedido da maioria que nunca se reconhece objecto da vida, vivendo sempre “em linha recta”. Para A. Campos a vida é torta, feita de vitórias e derrotas, de parasitismo e produtividade, de sujeira e higiene, de impaciência e paciência, de defeitos e qualidades, de características positivas e negativas... A vida é esse antagonismo, não é uma linha recta.

2 comentários:

  1. Gostava de ter uma caixa que depois de aberta me revelasse as palavras que gostaria de usar aqui para expressar o quanto adoro este poema do Pessoa/Álvaro de Campos, desde que o li pela primeira vez.
    Apetece-me agradecer-lhe por este poema maravilhoso.

    Cumpts!

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  2. Zé Alberto,
    Ter «feedback», ao que escrevo é sempre agradável e de facto este poema de Álvaro de Campos é surprendente!... Muitas temáticas estão neste meu mundo interior, que vou passando para aqui, umas agradarão mais outras não, de qualquer forma eu sei que me lêem e isso é o mais importante.
    Tenho que lhe agradecer também por ser um leitor assíduo.
    Um abraço,
    Manú

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