O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

domingo, 10 de outubro de 2010

SERRALVES. MARLENE DUMAS/GRAZIA TODERI

MARLENE DUMAS: CONTRA O MURO

“As minhas raízes”
.
Cor não sei grande coisa sobre as cores,
a sério uso-as intuitivamente
.
e as tuas raízes
.
não sei grande coisa sobre o racismo,
a sério o meu conhecimento é epidérmico
.
que queres dizer com isso, disse ele
oh, disse ela, não sabias que todas as cicatrizes
têm uma cor rosa que se nota
.
Marlene Dumas Maio 2010 ..
in Marlene Dumas: Contra o Muro, Catálogo da exposição, Museu de Serralves, 2010, p. 59.

A primeira imagem que me evocava o nome de Marlene Dumas (1953, Cidade do Cabo) era uma série de rostos povoados por cores a gouache. Algo inquietante sobressaía desses retratos, cujas fisionomias eram acentuadas pelas cores utilizadas. A cor da pele deixava de ser natural mas na sua irrealidade de azul, laranja ou rosa fucsia tornava visível a identidade de cada um dos personagens de forma emocional.
Marlene Dumas colecciona imagens da realidade, reportagens fotográficas, recortes que transforma nas suas pinturas com a força de várias camadas de ficções e cultura, que absorve da pintura italiana de Caravaggio, do cinema de Bergman ou dos livros de Céline. Na série “Contra o Muro”, que é o núcleo principal desta exposição, faz referência ao “muro”, chamado de segurança, que divide Palestianos de Israelitas na Cisjordânia.

Os muros são a forma arquitectónica mais básica que o homem utiliza, desde a pré-história, para separar algo, da terra aos caminhos. Numa cidade, os muros que dividem uma zona de outra, separam olhares, e a propriedade que temos de nos ver uns aos outros como grupo de indivíduos. Colocar alguém contra o muro é a forma mais básica de submissão do outro. Um destes dias voltando a casa, vejo uma dezena de jovens adolescentes negros e de origem árabe, com as mãos no ar, voltados contra o muro de um edifício que fica ao lado de minha casa, em Paris. Os polícias mantêm-nos nesta posição, numa espécie de rusga. Com que impunidade colocamos, mesmo dentro duma velha democracia como a francesa, no centro da sua capital, jovens indivíduos contra o muro? Berlim teve um muro, a China uma muralha. Na ala direita do Museu de Serralves, ao lado do contra-ponto do macrocosmos expositivo de Grazia Toderi que ocupa o resto do Museu, encontramos de novo os rostos que tornaram conhecida a pintora. Mais além deste muro real, com pessoas a serem revistadas pelo exército, encontramos figuras que fazem eco aos símbolos da humanidade: uma criança que acena (“Child Waving”, 2010), um homem ajoelhado (“Living on your knees”, 2010), uma mãe que chora um filho no cemitério (“The Mother”, 2009). O nosso olhar retorna, após cada perspectiva individual, aos muros presentes no muro do Museu: homens contra o Muro altifalante desta série (“Wall Weeping”, 2009) ou grandes blocos de pedra (“Mindblocks”, 2009)

que nos trazem o presente da história, que se é intemporal na arte, é igualmente contemporânea nesta série de trabalhos que nos mostram um hoje e um agora no estado de guerra latente entre os homens.


A exposição comissariada por Ulrich Loock exibe as pinturas mostradas pela primeira vez em Março-Abril de 2010, em Nova Iorque, na Galeria de David Zwirner. Acrescentando outros trabalhos da artista, a exposição é apresentada num justo equilíbrio. As grandes paredes do Museu de Siza permitem um confronto com a arquitectura presente nas telas, que quase se prolonga na brancura dos muros do museu. São telas de grande formato acompanhadas de algumas naturezas-mortas, azeitonas da oliveira bíblica (“Olives”, 2009), pratos com um cacho de uvas já comido (“The Graphes of Wrath”),

autores desaparecidos (“The Death of the Author”, 2003), retrato baseado numa fotografia do autor de Voyage au bout de la nuit, Céline, no seu leito de morte; e mães desaparecidas, como a mãe da pintora (“Hiroshima, mon amour”, 2008).

Uma vitrine com recortes de jornais encerra a exposição que urge ver, sobretudo num momento em que o único museu de arte contemporânea português reconhecido na Europa se encontra posto contra o muro por razões económicas.
.
A condição humana
(ou uma saudação a quem me inspirou)
.
(...)
.
Uma saudação à cultura popular dos fornecedores de imagens,
correspondentes de guerra, gestores de media,
guerreiros de hotel e artistas de aeroporto.
.
À arte de retratar, mais ou menos utilizada
por políticos, mártires, assassinos,
militares... que sei eu.
.
(…) Aos cartazes que Ad van Denderen
fotografou na Cisjordânia.
Aos soldados israelitas que se recusam a lutar
nos territórios ocupados.
.
A Amos Oz que se pronunciou
sobre o facto de judeus e árabes
terem sido vítimas do mesmo opressor.
Isto torna o seu conflito mais difícil, não mais fácil.
Ambos foram humilhados,
discriminados e perseguidos
pela Civilização Europeia.
.
(...)
.
À diferença entre esquecer e perdoar.
Á distinção entre liberdade, sina e destino.
Ao nosso ponto de partida e ao nosso ponto de chegada.
Ao facto de a vida ser circular,
e de o que anda por aí permanecer por aí,
de, para o melhor e para o pior,
partilharmos todos a mesma condição.”
Marlene Dumas Amesterdão, Setembro de 2006 in Marlene Dumas: Contra o Muro, Catálogo da exposição, Museu de Serralves, 2010, p. 72.

Nenhum comentário:

Postar um comentário