O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

terça-feira, 6 de abril de 2010

VOLTANDO A SEBASTIÃO ALBA

Perfazem 10 anos sobre a morte de Sebastião Alba, (1940-2000) e têm ocorrido algumas homenagens. Já escrevi no blogue sobre este poeta e vou acrescentar mais alguns dos seus poemas.
RECORDANDO: Sebastião Alba nasceu em Braga. Após viajar para Moçambique, passou a conviver com um importante grupo de escritores e intelectuais. Foi jornalista, guerrilheiro político, e teve uma vida bastante agitada e cheia de desilusões, com passagens por prisões e hospitais psiquiátricos. Alba passou com o tempo a viver como andarilho, acabando por morar na rua e morreu atropelado em Braga . "Um dos grandiosos deuses humildes da palavra", foi como se referiu a ele José Craveirinha, considerado o maior poeta africano e primeiro escritor moçambicano a ganhar o Prémio Camões de Literatura.

NÃO SOU ANTERIOR A ESCOLHA

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.

O LIMITE DIÁFANO

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:aí os versos espigam.
Isso me basta.
Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.


GOSTO DOS AMIGOS

Gosto dos amigos
Que modelam a vida
Sem interferir muito;
Os que apenas circulam
No hálito da fala
E apõem, de leve,
Um desenho às coisas.
Mas, porque há espaços desiguais
Entre quem são
E quem eles me parecem,
O meu agrado inclina-se
Para o mais reconciliado,
Ao acordar,
Com a sua última fraqueza;
O que menos se preside à vida
E, à nossa, preside
Deixando que o consuma
O núcleo incandescente
Dum silêncio votivo
De que um fumo de incenso
Nos liberta.

EPÍLOGO

Fui
hóspede desta mansão
na encruzilhada
dos meus sentidos.
O verso apenas é,
transversal e findo,
o poleiro evocativo
da ave do meu canto.
Essa ave em que o Outono
se perfila
e, cada vez mais exígua
no rumo e nas vigílias
do seu bando,
de súbito, espirala
até sumir-se
num país imaginário.
PRAIA

Entre dois domingos
a cidade oculta-nos
a lisa permanência do vento
e ele rectifica uma duna
Mas já a luz elide
nossas olheiras do asfalto
velozes véus de areia descobrem
pequenos sarcófagos de conchas
Refugiamo-nos
Mortal só a distância
de nem um indício no mar.

AS CASAS CONSTROEM-SE DE SOMBRAS

As casas constroem-se de sombra
quatro sombras ao alto
longe da esfinge dos astros
Falamos das cidades dos homens
que de tão sós as despovoam
Das casas nunca
Só as casas solitárias têm história
Giram na noite presas à face da terra
E vede a plasticidade das casas ao sol
a amabilidade das casas
à porta a incomunicabilidade
das casas sob os bombardeios.

CERTO DE QUE VOLTAS, CANÇÃO

Certo de que voltas, canção, a incerta hora,
espero como quem mora
só, a visitação.
Sei, por sinais e anjos e desviados,
que rebentas dos sonhos desolados em flores no chão.
Apenas flores, nem nimbos na lapela.
Flores para a mesa,
com o odor da certeza
de água, vinho e pão.
Apenas flores e tu,
ó meu amor sem nome,
e a nossa dupla fome
dum menino nu.

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