O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

domingo, 15 de agosto de 2010

MÁRIO DIONÍSIO (1916- 1993)

Escritor, professor e crítico de arte português. Licenciou-se Filologia Românica na Faculdade de Letras. Foi, durante vinte anos, professor do ensino secundário no Liceu Camões, ingressando depois, até 1986, na Faculdade de Letras de Lisboa, como professor associado. Colaborou em diversos jornais e revistas, como a Presença, Altitude, Revista de Portugal, Seara Nova e Vértice. Foi poeta, ficcionista, ensaísta (sendo um dos mais importantes teorizadores do neo-realismo, sem deixar de valorizar aspectos específicos da criação literária, exerceu a sua actividade crítica, quer no domínio da criação literária, quer no das artes plásticas) e pintor. Participou em inúmeras exposições colectivas, tendo realizado a sua primeira exposição individual, em Lisboa e no Porto, em 1989. Poeta ligado ao Novo Cancioneiro, destacou-se pelo carácter combativo da sua lírica e pelo seu optimismo quanto à evolução da sociedade e do homem, considerando que «a poesia está na vida/a poesia está em tudo quanto vive/a poesia está na luta dos homens».
A sua poesia foi-se progressivamente afastando do neo-realismo uma vez que o autor evoluiu com o tempo e as mudanças estéticas, políticas e sociais, muito embora se tenha afirmado sempre como opositor ao fascismo salazarista.


Obras:
Publicou as obras poéticas Lamento na Hora Incerta, Poemas (1941), As Solicitações e Emboscadas (1950), Riso Dissonante (1950), Memória de um Pintor Desconhecido (1965), Le Feu Qui Dort (1967, obra a partir da qual a sua poética apresenta por vezes traços do surrealismo) e Terceira Idade (1982, Prémio do Centro Português da Associação Internacional de Críticos Literários, ex-aequo com uma obra de Alexandre O'Neill). Publicou ainda o volume de contos Dia Cinzento (1944) e os romances Não Há Morte nem Princípio (1969), Monólogo a Duas Vozes (1986) e A Morte é Para os Outros (1988). No domínio do ensaio e da polémica escreveu Ficha 14 (1944), Vincent Van Gogh (1947), XVI Desenhos de Júlio Pomar (1948), «Guilherme de Azevedo», in Perspectiva da Literatura Portuguesa do Século XIX (1949), Encontros em Paris (1951, entrevistas com personalidades várias), Conflito e Unidade da Arte Contemporânea (1958), A Paleta e o Mundo (2 volumes, 1956-1960) e Autobiografia (1987). Há ainda vários estudos e prefácios críticos de sua autoria, como os de Poemas Completos, de Manuel da Fonseca (1963), Casa na Duna, de Carlos de Oliveira (1963), Barranco de Cegos, de Alves Redol (1970), Poeta Militante I, de José Gomes Ferreira (1977), O Mundo dos Outros, de José Gomes Ferreira (1978), O Anjo Ancorado, de José Cardoso Pires (1985), Mensagem, de Fernando Pessoa (1985), e Júlio Pomar (1990)


*
As Solicitações e Emboscadas
Pode-se pintar com óleo
com petróleo ou aguarrás
Mas pode-se também pintar
com lágrimas silenciosas
No desprezo das horas odiosas
tanto faz


Reunião Clandestina
Silenciosa Música do Cosmos
As bocas que estão fechadas não estão caladas
Os braços que estão caídos não estão imóveis
E os olhos que estão voltados não estão sem ver
Homem só homem
só tu bem me compreendes
quando digo que não estás só
e bem entendes
bem entendes este longo discurso
enchendo o ar que vem de toda a parte
e vai a toda a parte eternamente
Em surdina
*

Meu galope é em frente
Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam
E porque, dia e noite,
minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das ilhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
.
Eu sigo e seguirei
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
Por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas ilhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
– por terra, mar e ar.
.
Direis que não é poesia
e a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.

É andar, é andar!
Vendedor AmbulanteElegia ao Companheiro Morto
Meu companheiro morreu às cinco da manhã
Foi de noite ao fim da noite
às cinco em ponto da manhã
Ah antes fosse noite noite apenas
noite sem a promessa da manhã
Ah antes fosse noite noite noite apenas noite
e não houvesse em tudo a promessa da manhã
Deitado para sempre às cinco da manhã
Agora que sabia olhar os homens
com força e ver nas sombras
que até aí não via a promessa risonha da manhã
Mas quem se vai interessar amigos
quem por quem só tem o sonho da manhã?
E uma vez de noite ao fim da noite mesmo
ao cabo da noite meu companheiro
ficou deitado para sempre
e com a boca cerrada para sempre
e com os olhos fechados para sempre
e com as mãos cruzadas para sempre
imóvel e calado para sempre
E era quase manhã
E era quase amanhã
*Memória dum Pintor Desconhecido
Os presos contam os dias
eu as horas nesta prisão maior
onde um olhar ficou boiando
e uma voz um som de passos
perseguidos na sombra
perseguindo a segurança fugidia
Na cidade que amo e a sós comigo
é talvez só futuro ou já saudade
com alma bem nascida entre o fragor de máquinas,
cimento e energia atómica
indefeso entre irmãos de cárcere
demando a voz que foge os irmãos
que não vejo o brando olhar
que guarda o meu desejo
e só consigo ver o gomoso arrastar das horas
e das horas tantas horas
à baioneta marcadas
por uma sentinela
aos quatro cantos da janela gradeada
Mulher de Mãos Gretadas
Ode
Oh tempo de hoje
a tua face é odiada por milhões
Quem não te amaldiçoou
ao menos uma vez?
e não crispou as mãos
e o rosto ao menos uma vez
ao remoinho impiedoso das tuas contradições?
Meu tempo meu tempo
feito de braços decepados
com gritos reprimidos
tua poesia de dentes cariados
teus sonhos desmentidos
e ainda sempre amados
Vêem-te o esgar
Vivem-te o bafo pestilento
todos te odeiam
Sim
Mas eu amo-te
tempo dos meus dias
e dou-te com fervor a toda a hora
o mais profundo e mais inolvidável que há em mim

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2 comentários:

  1. Caros autores do Thinker Free,
    é com muito agrado que encontro no vosso blog um post dedicado a Mário Dionísio.
    Venho apenas alertar-vos para o facto de haver um pequeno lapso na data de nascimento do escritor e pintor em questão: de facto ele nasceu em 1916 e não em 1919. Seria bom que pudessem emendar a data para que o erro não se alastre.
    Podem consultar mais acerca da vida de Mário Dionísio na página do Centro Mário Dionísio:
    http://www.centromariodionisio.org/
    Com os melhores cumprimentos,
    Diana Dionísio

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  2. Diana, peço imensa desculpa pelo erro cometido, que entretanto já foi corrigido. Tenho a informá-la que o erro advém do site: www.citi.pt/cultura/.../frameset_dionisio.html,que também estive a consultar.
    Com os meus cumprimentos,
    MC

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