PANFLETO.Fere-me esta idolatria mais do que todos os crimes:
Tanto fervor desviado e perdido!
Tanta gente ajoelhando à passagem do tempo
e tão poucos lutando para lhe abrir caminho!
Há uma vida inteira a jogar e gastar
no pano verde imenso das campinas do mundo.
Há desertos cativos de uma ausência dos povos.
Há uma guerra devastando a vida,
enquanto a supuserem redimida!
E em nós a redenção quase perdida!..
Vamos rasgar, ó poetas, esta mentira da alma,
vamos gritar aos homens que os enganam,
que não é a força, que não é a glória,
que não é o sol nem a lua nem as estrelas,
nem os lares nem os filhos, nem os mares floridos,
nem o prazer nem a dor nem a amizade,
nem o indivíduo só compreendendo as causas,
nem os livros nem os poemas, nem as audácias heróicas,
— a redenção sou eu, se formos nós sem forma,
sem liberdade ou corpo, sem programas ou escolas!
Aqui está a redenção. Tomai-a toda
E se é verdade a fome
se é verdade o abismo,
se é verdade o pensamento húmido
que pestaneja ansioso nos cortejos públicos,
se são verdade as redenções que mentem:
Matem essa gente para salvar a Vida!
E matem-me com elas para que as queime ainda!
.
INDEPENDÊNCIA
.
Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me a aceitar o que me derem.
Recuso-me às verdades acabadas;
recuso-me, também, às que tiverem
pousadas no sem-fim as sete espadas.
.
Recuso-me às espadas que não ferem
e às que ferem por não serem dadas.
Recuso-me aos eus-próprios que vierem
e às almas que já foram conquistadas.
.
Recuso-me a estar lúcido ou comprado
e a estar sozinho ou estar acompanhado.
Recuso-me a morrer. Recuso a vida.
.
Recuso-me à inocência e ao pecado
como a ser livre ou ser predestinado.
Recuso tudo, ó Terra dividida!
.
Jorge de Sena, in 'Coroa da Terra'
.
ODE À MENTIRA
.Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,
como sereis cruéis, como sereis injustas?
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo
lembram e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas das ruas e dos montes
e dos mares da terra que marcais,
matriculais, comprais, vendeis, hipotecais,
regais a sangue, esses e os outros,
que, de olhar à escuta e de sorriso amargurado
à beira de saber-vos, vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos...
- como sereis cruéis, como sereis injustas,
como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria são tudo quanto tendes,
porque ainda é nosso o coração que apavorado
em vós soluça a raiva ansiosa de esmagar
as pedras dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera.
Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.
Jorge de Sena, in 'Pedra Filosofal'
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