O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O ANDAIME - FERNANDO PESSOA



O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
.
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.
.
A esperança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha esperança,
Rola mais que o meu desejo.
.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
.
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
.
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças — Mortas,
porque hão de morrer.
.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim — O sonho
atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.
.
Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Nenhum comentário:

Postar um comentário