O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

domingo, 2 de setembro de 2012

POEMAS DE BERNARDO PINTO DE ALMEIDA


Dizíamos:
A rota dos dias é apressada
A translação do tempo afeta-nos –
A publicidade dizia:
«A vida moderna não dá tempo
Para compreendermos o que se passa à nossa volta.»
Vendia produtos de parar o tempo
Congelar o instante – máquinas
Sofisticadas que parecia servirem
Para proporcionar mais tempo
Mais satisfação.

O tempo
Se acaso corre a nosso favor
Deixa-nos abandonados
Sem pressa sobre uma cama de ervas
Perfume dos corpos
Enlaçados – coisas de crianças
Coisas de amor
Coisas sem importância.

.../...

TANGO

O teu sexo na minha boca
é a flor que arde: a sua chama
explode táctil abre ruínas onde antes
cidades se erguiam habitadas.

Não tem medida a forma
com que as pernas
pontas abertas de uma estrela
se atiram no vazio deste quarto.

O teu sexo na minha boca
é um canto. Sonoros seus líquidos
abrem-me na língua um sulco fundo
que traz a luz que espasma na tua boca

noite a querer fechar-se lá por dentro.
Mas nem isso me aquieta
nem a sombra que cai nem esse grito
chegam para calar o meu desvairo.

O teu sexo na minha boca
é o meu sexo: o seu cheiro
acre que inundando
meu corpo o abre a todo o seu espanto.

Bilhete postal (H.S. 3B)

Aos que fizeram da luta de classes um negócio
se deitaram das pontes mas com pára-quedas
se despediram do mundo e fundaram outra empresa,
fizeram da dor um carnaval
montaram takeaways de sentimentos
não poderemos senão desejar
os melhores votos de
uma feliz,
rápida,
morte.

AS PALAVRAS SÃO COISAS

Falamos das coisas e elas acontecem
por isso ciciamos o que nos pede o corpo
não são as coisas só aquilo que dizemos
nossas pobres palavras não as dizem inteiras?
As palavras são coisas, extremas, luminosas,
quando tu dizes porta, há uma porta que se abre
quando tu dizes sexo, há um amor que se cumpre
não sabemos sequer o poder das palavras
nem o poder das coisas nem o poder dos rostos.
As coisas são palavras feridas pela morte
são agulhas finíssimas que trespassam a noite
os teus lábios dizem coisas os teus lábios cintilam
por eles fala o mundo, por eles se faz o oiro
pois o mundo acontece sempre que o pronuncias.

As Palavras São Coisas #2

 
Se a tua boca as diz

se no teu rosto as vejo

as palavras são coisas

quando as fere o desejo



e quando dizes mar

e quando dizes norte

não sei se não me acerco

de um bocado de morte



e quando dizes barco

ou quando dizes esfera

há águas que transbordam

e inundam a terra



as palavras são coisas

as palavras são um perigo

se acaso as pronuncias

quando não estás comigo



e quando tu adormeces

muda num sonho fundo

tudo se desvanece

e deixa de haver mundo. 


Obrigado
  
Para poderem viver
As pessoas enlouquecem
Dão gritos nas ruas
Agridem os filhos.

Não há mais que loucura
Violência e espanto
As pessoas enlouquecem
Porque a vida é assim mesmo.

Para poderem viver
as pessoas enlouquecem
Porque o silêncio as fere
Lhes rebenta por dentro.

Sobre a cama vazia
Há um que abriu os pulsos
E na rua noite dentro
Há corpos já caídos.

Abrigam-se em silêncio
De um silêncio ainda maior.
Mas o gesto está ferido
Dessa loucura surda.

Se voltam para casa
Não está lá ninguém
Vão falando sozinhos
Para não gritar de medo.

As pessoas enlouquecem
As pessoas enlouquecem
Obrigado pela sua visita.
Volte sempre.

Os livros

 Os livros virão ter a minha casa
Pelo noturno vale
Pelos caminhos breves
Pelas sendas de azul
Pelas florestas ao longe
Os livros virão ter junto de mim.

Abro-os numa página
Uma página ao acaso
Lá dentro os teus olhos
Vão olhar-me de frente
Uma página adiante
Ou duas para trás
Hão de ter teus cabelos
Enrolando nos meus.
Uma página em branco
É a tua boca agreste
Como num sobressalto.

Os livros virão ter a minha casa
Mas em cada livro aberto
Em cada letra lida
És sempre tu que estás
Tal como em cada casa
Em cada rua à chuva
Cada montra olhada
Cada dia a dia
É teu corpo que sonho
Teu olhar magoado
Tua voz que cantava
A linha dos teus joelhos
Sobrepondo-se ao mar.

E nesses livros todos
Que me enchem as estantes
Nas suas gravuras secas
Suas letras esguias
Nas palavras que formam
O idioma é só um
A frase diz o mesmo
Só tu saberias
Traduzi-las para mim.

Os livros virão ter a minha casa
De uma qualquer maneira
Talvez pelo correio
Ou por alguém que os traga
Mas eu não saberei lê-los
Nem os seus dizeres se voltam
Para os meus olhos cegos
Desde que tu partiste.

Os livros ficarão
Para sempre guardados
Nesse lugar a que chamo
A minha casa.

 Antes

 Não, ainda não a lira
Mas o arco antes, o que se tende afiado
Contra a noite numerosa de surpresa
Vai de boca em boca como o vento.

Não, ainda não a boca
Mas os dedos antes, que se estendem de noite
Quase cegos e procuram dentro da escuridão
A tua sombra.

Não, ainda não a sombra
Mas o rosto antes, que a lua ainda ilumina
Mas de repente se volta. E sobre a sua flor
Já cai a morte.

Não, ainda não a morte
Mas a voz antes, a que chora
A que de manso vem
E murmura o teu nome.
  
  Viagem

 eu contigo viajo.
Para tempos para lugares
que não sabia: onde
aquele lugar que ainda me espera
secreta coincidência lembra
aquele dia em que chovia.

eu contigo viajo.
Vou de avião. Aqui S. Petersburgo
adiante Miami Tumbuctu Viena
ou mais ao pé da porta o Porto
o Dubai que deixámos para trás
porque o calor demais a arquitectura.

eu contigo viajo.
No teu corpo há um mapa um continente
vulcões de lava acesa noite dentro
se me beijas é para o sul que viajamos
se em ti me afundo o mundo que estremece
é um lugar turbulento nos teus braços o mar

Os dias
  
 Os dias, estes dias,
Estradas antes habitadas pelo fogo, desertos,
Caminhos que não vão dar a parte alguma
Os dias, estes dias.

Tu sabes, eu sei, todos parecem já saber
Que nenhuma coisa nova se prepara.
As rosas continuam a florir
É junho, o verão chega, a vida cai na sombra.

Os dias, estes dias,
São círculos que se fecham sobre si
Janelas que dão sobre altos muros
Saguões, escadas sobre ruas secundárias.

Nenhum sol se levanta o dia é igual
As horas lentas trazem por dentro marcas
De camas desfeitas portas abertas
Cartas esquecidas sobre mesas.

Há um perfume de flores no chão, caídas,
Fio de voz que se suspende,
Lâmina que te rouba do sossego.
A morte assalta-nos: vazia, pobre, estúpida.

Os dias, estes dias
Em que tudo parece feito em cinzas
São os dias dos suicidas, dos amantes
Quando a esperança do amor os abandona.
  

A ave

A ave que passou muito lá em cima
O que resta dos gestos o que faz
Com que a voz mesmo por dentro
Se habitue
A dor que as coisas têm pela tarde.
Tudo isso parece acontecer
Num sussurro das coisas rente à vida.
Mas nada disso traz consigo fulgor
A moldura dos teus cabelos soltos
Que te ovalam o rosto num retrato
E do retrato fazem luz ainda sem nome
E da luz voo das aves no céu alto.

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