Fernando
e Ofélia
O encontro/desencontro
destes dois seres predestinados para nunca se encontrarem e, uma vez
encontrados, cada um deles viver, um na plena e redentora ilusão de se saber
amado – miticamente «para sempre» -, e outro num mundo alheio, insuspeitado e
ingénuo, votada à desilusão.
Se
Ofélia, tivesse lido o menor dos poemas do seu efémero e improvável «namorado»
onde nada se glosa senão a evidência de que a vida é pura Ficção e a chamada
Ficção a única e impenetrável «verdade» dela, não teria embarcado nessa travessia
do coração para um porto que nunca existiu para o companheiro/fantasma dessa
viagem sem viajante dentro. Ofélia tinha razão quando Fernando vinha com o seu
duplo infernal Álvaro de Campos, que a afastava dela. Fernando
Pessoa teve como única musa o desamor.
No
combate venceu a Literatura, monstro sublime da imaginação, única paixão que
assolou Pessoa.(Eduardo Lourenço)
ALGUMAS CARTAS DE FERNANDO A OFÉLIA, UMA DELAS ESCRITA PELO SEU HETERÓNIMO ÁLVARO DE CAMPOS:
Meu Be«be»zinho lindo:
Não imaginas a graça que te achei
hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que
mostraste prazer em me ver (Álvaro de Campos).
Tenho estado muito triste, e além d'isso
muito cansado - triste não só por te não poder ver, como também pelas
complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer
que a influência constante, insistente, hábil d'essas pessoas; não ralhando
contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o
teu espírito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já
differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu
própria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso.
Oxalá me tenha enganado...
Olha, filhinha: não vejo nada claro no
futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado,
de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de
em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais
dócil, mais meiga, mais amorável.
Enfim...
Amanhã passo á mesma hora no
Largo de Camões. Poderás tu apparecer à janella?
Sempre e muito teu
CARTA A OFÉLIA
QUEIRÓS - 31 DE MAIO DE 1920
Bebezinho do Nininho-ninho:
Oh!
Venho só quevê pâ dizê ó Bebezinho que gotei muito da catinha dela. Oh!
E também tive munta pena de não tá ó pé do Bebé pâ le dá jinhos.
Oh! O Nininho é pequenininho!
Hoje o Nininho não vai a Belém porque, como não sabia se havia carros,
combinei tá aqui às seis ho'as.
Amanhã, a não sê qu'o Nininho não possa é que sai daqui pelas cinco e
meia. [desenho de uma meia] (isto é a meia das cinco e meia).
Amanhã o Bebé espera pelo Nininho, sim? Em Belém, sim? Sim?
Jinhos, jinhos e mais jinhos.
CARTA A OPHÉLIA
QUEIROZ – 25 DE SETEMBRO DE 1929
Exma. Senhora D. Ophélia Queiroz:
Um abjecto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu
particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Ex.ª — considerando
que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma
ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) — que V. Ex. ª está
proibida de:
(1) pesar menos gramas,
(2) comer pouco,
(3) não dormir nada,
(4) ter febre,
(5) pensar no indivíduo em questão.
Pela minha parte, e como íntimo e sincero amigo que sou do meliante de
cuja comunicação (com sacrifício) me encarrego, aconselho V. Ex.ª a pegar na
imagem mental, que acaso tenha formado do indivíduo cuja citação está
estragando este papel razoavelmente branco, e deitar essa imagem mental na pia,
por ser materialmente impossível dar esse justo Destino à entidade fingidamente
humana a quem ele competiria, se houvesse justiça no mundo.
Cumprimenta V. Ex. ª
Álvaro de Campos
eng. Naval
CARTA A OFÉLIA QUEIRÓS - 9 DE
OUTUBRO DE 1929
Terrivel Bébé
Gosto das suas cartas,
que são meiguinhas, e também gosto de si, que é meiguinha também. E é bombom, e
é vespa, e é mel, que é das abelhas e não das vespas, e tudo está certo, e o
bebé deve escrever-me sempre, mesmo que eu não escreva, que é sempre, e
eu estou triste, e sou maluco, e ninguém gosta de mim, e também porque é que a
havia de gostar, e isso mesmo, e torna tudo ao princípio, e parece-me que ainda
lhe telephono hoje, e gostava de lhe dar um beijo na bocca, com exactidão e
gulodice e comer-lhe a bocca e comer os beijinhos que tivesse lá escondidos e
encostar-me ao seu hombro e escorregar para a ternura dos pombinhos, e
pedir-lhe desculpa, e a desculpa ser a fingir, e tornar muitas vezes, e ponto
final até recomeçar, e porque é que a Ophelinha gosta de um meliante e de um
cevado e de um javardo e de um indivíduo com ventas de contador de gás e
expressão geral de não estar ali mas na pia da casa ao lado, e exactamente, e
enfim, e vou acabar porque estou doido, e estive sempre, e é de nascença, que é
como quem diz desde que nasci, e eu gostava que a Bebé fôsse uma boneca minha,
e eu fazia como uma criança, despia-a, e o papel acaba aqui mesmo, e isto
parece ser impossível ser escripto por um ente humano, mas é escripto por mim .
Cartas de Amor, Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de
David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça
Queiroz.) Lisboa, Ática, 1978 (3ª ed. 1994)
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