A MÃE - ALMADA NEGREIROS
A invenção do dia claro (EXCERTO)
Imaginava eu que havía tratados da vida das pessoas, como ha
tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o
tratamento que ha para os animaes domesticos, não é? Como os cavalos tão bem
feitos que ha!
Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como ha hostias
para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hostia. Um livro
pequenino, com duas paginas, como uma hostia. Um livro que dissesse tudo, claro
e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.
* * * * *
Não achas, Mãe? Por exemplo. Ha um cão vadio, sujo e com fome,
cuida-se deste cão e ele deixa de ser vadio, deixa de estar sujo e deixa de ter
fome. Até as crianças já lhe fazem festas.
Cuidaram do cão porque o cão não sabe cuidar de si–não saber
cuidar de si é ser cão.
Ora eu não queria que cuidassem de mim, mas gostava que me
ajudassem, para eu não estar assim, para que fosse eu o dono de mim, para que
os que me vissem dissessem: Que bem que aquele soube cuidar de si!
Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se
diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma arvore! quando ha
uma arvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!
* * * * *
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e
nenhuma era para copiar.
Como o livro, as pessoas tinham principio, meio e fim. A principio
o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mão, no fim fiquei com a mão suada
do livro de me ter estendido a mão.
Talvez que nos outros livros… mas os titulos dos livros são como
os nomes das pessoas–não quere dizer nada, é só para não se confundir…
* * * * *
Sonhei com um paíz onde todos chegavam a Mestres. Começava cada
qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha á escuta do universo; em
seguida, fabricava desde a materia prima o papel onde ia assentando as
confidencias que recebia directamente do universo; depois, descia até ao fundo
dos rochedos por causa da tinta negra dos chócos; gravava letra por letra o
tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da arvore a prensa onde
apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim
que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam
escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
* * * * *
Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já
estavam todas escritas, só faltava uma coisa–salvar a humanidade.
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