O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

terça-feira, 20 de março de 2012

O JARDIM DOS SUPLÍCIOS - OCTAVE MIRBEAU



Mirbeau começa este seu livro, com um interessante frontispício, do qual transcrevo alguns excertos:
Alguns amigos achavam-se reunidos, uma noite, em casa de um dos nossos mais célebres escritores. Tinham jantado copiosamente e a propósito não sei de quê, talvez a propósito de nada, começaram a falar de crimes. Eram só homens que ali estavam; moralistas, poetas, filósofos, médicos, tudo gente que podia discutir livremente, dando largas à sua fantasia, às suas manias e aos seus paradoxos…/…
Com uma tranquilidade de alma tão perfeita, como se unicamente fosse ponderar os méritos do charuto que estava a fumar, um membro da Academia de Ciências Morais e Políticas disse:
-Palavra de honra!...Considero o homicídio como a maior das preocupações humanas e acho que todos os nossos actos provém dele…
-É evidente!...Aprovou um sábio darwinista. O senhor acaba de dizer uma dessas verdades eternas, à maneira das que descobria diariamente o lendário de La Palisse…pois a morte é a própria base das nossas instituições sociais e portanto a mais imperiosa necessidade da vida civilizada….Se não se cometessem mais crimes, não haveria governos de nenhuma espécie, visto que o crime em geral e o homicídio em particular constituem, não só um pretexto, mas também a razão de ser desses governos…A não ser assim, viveríamos em plena anarquia, coisa que ainda não se pode conceber…Portanto, em vez de destruir o homicídio, devemos cultivá-lo com inteligência e perseverança…e não conheço melhor meio de o cultivar do que as leis.
(…)
-Aliás o homicídio, cultiva-se bastante por si mesmo…Falando com franqueza, não é o resultado de tal paixão, nem a forma patológica da degenerescência; trata-se de um instinto vital que existe em nós…que existe em todos os seres organizados e os domina com a mesma força de um instinto genésico…E isto é tão certo como, na maior parte das vezes, os dois instintos se combinarem entre si, confundindo-se um com o outro, de maneira que ambos formam um só instinto, não se sabendo qual dos dois nos impulsiona ora a dar vida, ora a deixá-la, onde está a morte e onde está o amor. Eu ouvi em confissão um respeitável assassino que matava as mulheres, não para as roubar, mas para as violar. O seu fito era que espasmo de prazer de um concordasse exactamente com o espasmo da morte da outra…«Nesses momentos, dizia-me ele, imagino-me um Deus e julgo criar o mundo!»
-Ah! – exclamou o célebre escritor.
–O senhor recorre a exemplos de profissionais do crime.
O sábio replicou suavemente:
É porque nós todos temos alguma coisa de assassinos…Todos nós temos notado no nosso cérebro sensações análogas, ainda que em menor grau…O impulso inato do crime contem-se, refreia-se por meio de executórios legais: A indústria, o comércio colonial, a guerra, a caça, o anti-semitismo…porque é muito perigoso o obedecer-lhes sem moderação e, prescindindo das leis, as satisfações morais que dele derivam não equivalem às consequências comuns de um acto atrevido, a prisão, os interrogatórios do juiz, sempre fatigantes e desprovidos de interesse científico…e por último a guilhotina…
-O senhor exagera – interrompeu o primeiro interlocutor. – Só para os assassinos sem arte e sem talento, brutos inconscientes e faltos de toda a psicologia, é que o homicídio é perigoso…Um homem inteligente e acostumado a raciocinar, poderá, se for dotado de uma serenidade imperturbável, cometer todos os homicídios que quiser. E pode estar certo de uma impunidade absoluta…A superioridade das suas combinações prevalecerá sempre à rotina das indagações policiais e, forçoso é confessá-lo, às míseras investigações criminalistas em que se comprazem os juízes de instrução…A este respeito, como em todos os mais, são os pequenos que pagam pelos grandes…Não se pode duvidar, meu querido amigo, de que o número dos crimes ignorados…
-E tolerados…
-E tolerados…ia já dizê-lo…Não admite o senhor que este número é mil vezes maior que o dos crimes descobertos e punidos, que os jornais espicaçam com uma tão estranha prolixidade e com uma tão repugnante falta de filosofia?..Se concorda com isto, não poderá negar que o gendarme está muito longe de ser um espantalho para os intelectuais do crime…
-Sim, senhor, tem razão…Mas não se trata disso…O senhor confunde as espécies…Eu dizia que, na natureza e em todo o ser vivo o homicídio é normal e não excepcional e disso mesmo resulta que as sociedades se arrogam o direito exclusivo de os matar, em prejuízo dos indivíduos a quem este direito compete exclusivamente.
-Sim, senhor!..proferiu o loquaz filósofo (…)
O nosso amigo tocou com o dedo na chaga…Pela minha parte não acredito que exista uma única criatura humana, que, pelo menos virtualmente não seja um assassino (…)
E exemplifica pela observação que faz às pessoas, examinando as suas fisionomias nas ruas, cafés, estações de comboio, etc…Refere ter ido a uma feira popular e ficar surpreendido com o interesse das pessoas pelas barracas onde com armas se acertava em bonecos com rosto humano, manifestando-se com regozijo, naqueles simulacros de morte e discorre sobre o desenvolvimento sofisticado destes jogos.
«- O senhor só nos fala de brutos, camponeses (…) e as «inteligências cultas (…) os homens de sociedade (…)
-Quais são os hábitos, os prazeres predilectos, desses homens que refere, não são a esgrima, o duelo, os desportos violentos, o abominável tiro aos pombos, as corridas de toiros, a caça…coisas que na realidade constituem retrocessos para épocas de antiga barbaria (…)
(…) e os militares, escolhem uma profissão honrosa, cujo único esforço intelectual consiste numa pessoa realizar as mais diversas violências, em desenvolver e multiplicar os mais completos, amplos e seguros meios de saque, destruição e morte (…) E eu próprio? Tenho a certeza que não sou um monstro! (...) Pois bem, quantas vezes não sobe do fundo do meu ser até ao cérebro, uma onda de sangue, o desejo…o áspero, violento e quase invencível desejo de matar!
(…) O moralista pode fazer os comentários que lhe agradarem…Essa necessidade de matar nasce com o homem com a necessidade de comer e ambos os impulsos se confundem…Esta necessidade instintiva, motor de todos os organismos vivos, desenvolve-se com a educação, em vez de se anular, e as religiões santificam-na em vez de a maldizer; todos os elementos se combinam para a converter em centro da nossa admirável sociedade. Desde que o homem desperta a voz da consciência, a ideia de morte germina no seu cérebro. O homicídio exaltado à categoria de dever, popularizado até ao heroísmo, acompanhá-lo-á em todas as fases da sua existência (…) Fará que só respeitem os heróis, feras repulsivas carregadas de crimes e avermelhadas pelo sangue humano. As virtudes, pelas quais se elevará a um grau proeminente e que lhe hão-de dar a glória, a fortuna, o amor, só se apoiarão no homicídio…Enfim encontrará na guerra a suprema síntese da eterna e universal loucura de matar, do assassínio regularizado, regulamentado, obrigatório, como uma verdadeira função nacional. Onde quer que for, faça o que fizer, verá sempre esta palavra: assassínio, perenemente escrita na portada do imenso matadouro, chamado humanidade (…) Obrigai-nos um dia a matar uma infinidade de indivíduos a quem não conhecemos e, por conseguinte, a quem não podemos odiar, é quanto maior é o número dos homicídios que executamos, tanto mais nos honram e recompensam? (…)
Um jovem interveio neste debate, para contar algumas situações ocorridas com o seu pai, médico cirurgião e a forma, como ele via o corpo de um ser humano e um caso específico. O pai operava uma mulher, fazendo uma operação difícil e aproveitando o seu estado inconsciente, deduziu que devia ter uma infecção no piloro, abriu o estômago e operou, no dia seguinte a mulher estava morta.
Outras experiências foram contadas, até que um ilustre escritor interveio, para falar das mulheres, seres sensíveis, mas também com uma curiosidade mórbida, pelas notícias mais escabrosas, pelos acontecimentos de rua mais sanguinolentos.
-Amam do mesmo modo que matam!...O assassínio nasce do amor e o amor alcança o seu máximo de intensidade no assassínio…A mesma exaltação fisiológica…os mesmos gestos de agonia…as mesmas sensações…frequentemente as mesmas palavras em contracções idênticas (…)
Os ânimos exaltaram-se debatendo antagonicamente a questão da mulher, até que o escritor resolveu contar a sua experiência dizendo:
(…) Espero que possam suportar o horror sangrento!...Isto chama-se:
O Jardim dos Suplícios


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