Há pessoas que deixam saudade! Li no JL, que no dia 29 de Março, foi feita uma homenagem a Eduardo Prado Coelho (1944-2007), na Casa Fernando Pessoa, precisamente no dia dos seus anos e lembrei-me das crónicas que durante anos li nos jornais onde escreveu, com a chegada dos jornais era sempre a primeira coisa que eu lia, as crónicas. Não só do Eduardo Prado Coelho como de outros que também foram desaparecendo e outros que continuam e têm uma amplitude de abordagem muito interessante. Através dos mesmos interessei-me por certos assuntos, refleti sobre ideias e enfim também me proporcionaram uma amplidão de interesses vários. Obviamente que as crónicas são sempre datadas, vão se perdendo no tempo.
Procurei através da internet encontrar algo escrito por Eduardo Prado Coelho, mas apenas encontrei duas crónicas e nas mesmas me reencontrei. Uma refere-se aos cafés, de facto há uns anos eram locais de encontro e de tertúlia e isso foi-se deslocando para outros sítios. A outra refere-se ao cinema e também neste aspecto o panorama mudou muito, acabaram-se os antigos cinemas na cidade, com as suas matinés clássicas e os seus ciclos temáticos, acabaram-se os cine-clubes e o cinema passou de culto a uma festa de muito artificio.
Vou apenas transcrever excertos destas crónicas.
OS ORFÃOS DOS CAFÉS
«Tal como Borges escreveu um dia, eu poderia de igual modo dizer: «Nasci noutra cidade que também se chamava Lisboa».
Borges diz que recorda o que viu e também o que os pais lhe contaram. Mas ele sabe que as nossas verdadeiras cidades são sempre as cidades da nossa infância. Por isso acrescenta: «sei que os únicos paraísos não proibidos ao homem são os paraísos perdidos. / Alguém, quase idêntico a mim, alguém que não terá lido esta página / lamentará as torres de cimento e o podado obelisco». A cidade de hoje será a infância de amanhã.
Borges diz que recorda o que viu e também o que os pais lhe contaram. Mas ele sabe que as nossas verdadeiras cidades são sempre as cidades da nossa infância. Por isso acrescenta: «sei que os únicos paraísos não proibidos ao homem são os paraísos perdidos. / Alguém, quase idêntico a mim, alguém que não terá lido esta página / lamentará as torres de cimento e o podado obelisco». A cidade de hoje será a infância de amanhã.
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«Lisboa Desaparecida», isto é, a Lisboa da minha infância e sobretudo a Lisboa dos meus tempos de estudante, mas também a Lisboa dos meus pais e dos meus avós (com o tempo tudo se mistura, e regressamos todos à mesma pátria intemporal, à Lisboa fora do tempo, onde brincámos e aprendemos a amar). Associando a isto duas outras obsessões, mas a verdade é que as duas coisas não estão separadas: Sá-Carneiro e Pessoa, ligados aos cafés que eles frequentaram e aos lugares onde passearam e escreveram.
«Lisboa Desaparecida», isto é, a Lisboa da minha infância e sobretudo a Lisboa dos meus tempos de estudante, mas também a Lisboa dos meus pais e dos meus avós (com o tempo tudo se mistura, e regressamos todos à mesma pátria intemporal, à Lisboa fora do tempo, onde brincámos e aprendemos a amar). Associando a isto duas outras obsessões, mas a verdade é que as duas coisas não estão separadas: Sá-Carneiro e Pessoa, ligados aos cafés que eles frequentaram e aos lugares onde passearam e escreveram.
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Noutro dia Jorge Listopad escrevia que à saída do Teatro São João do Porto me tinha visto, no último café iluminado na noite da cidade, a escrever certamente a crónica para o dia seguinte. Não era por acaso. O resto (que se poderia dizer «o essencial», mas talvez isto nem sempre bata certo), escrevo-o à mão, em cadernos verdes ou azuis, nos cafés ensonados e friorentos que ainda existem pelo mundo fora.
A verdade é que adoro cafés. E que tive em cafés alguns dos mais belos momentos de leitura, encontro, discussão, contemplação, escrita, estudo, violência de olhares, ternura das mãos, de que me posso lembrar. leite quente.
Noutro dia Jorge Listopad escrevia que à saída do Teatro São João do Porto me tinha visto, no último café iluminado na noite da cidade, a escrever certamente a crónica para o dia seguinte. Não era por acaso. O resto (que se poderia dizer «o essencial», mas talvez isto nem sempre bata certo), escrevo-o à mão, em cadernos verdes ou azuis, nos cafés ensonados e friorentos que ainda existem pelo mundo fora.
A verdade é que adoro cafés. E que tive em cafés alguns dos mais belos momentos de leitura, encontro, discussão, contemplação, escrita, estudo, violência de olhares, ternura das mãos, de que me posso lembrar. leite quente.
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[Eduardo Prado Coelho, in Crónicas no Fio do Horizonte, Asa, 2004]
O FIM DA CINEFILIA
Quem eram os «cinéfilos»? Segundo um dos maiores críticos da história do cinema, Serge Daney, eram gente que gostava de se apresentar deste modo: nós somos filhos do cinema («ciné-fils»). Isto é, nós vemos o mundo através do modo como o cinema vê o mundo, porque essa é a melhor forma de tremer face ao medo, de olhar uma árvore ao fim do dia, de cantar numa praia nocturna a sonhar com o tesouro dos piratas ou de tocar nos cabelos de uma mulher. E por isso consideramos os filmes não apenas como arte, e elementos centrais de uma história da cultura dos homens, mas também como objectos íntimos, segredos que se passam de mão em mão, rebuçados, fetiches, berlindes, abóbadas de cristal donde a neve cai silenciosamente. Isto teve um tempo, teve lugares para se viver, velhas salas de encontros cúmplices, festivais, cinematecas, refúgios, fotografias coladas na parede, cartazes, Johnny Guitars e Gertruds da nossa vida, imperatrizes orientais de unhas lacadas a vermelho, nosferatus do espanto, monstros de terror.
Quem eram os «cinéfilos»? Segundo um dos maiores críticos da história do cinema, Serge Daney, eram gente que gostava de se apresentar deste modo: nós somos filhos do cinema («ciné-fils»). Isto é, nós vemos o mundo através do modo como o cinema vê o mundo, porque essa é a melhor forma de tremer face ao medo, de olhar uma árvore ao fim do dia, de cantar numa praia nocturna a sonhar com o tesouro dos piratas ou de tocar nos cabelos de uma mulher. E por isso consideramos os filmes não apenas como arte, e elementos centrais de uma história da cultura dos homens, mas também como objectos íntimos, segredos que se passam de mão em mão, rebuçados, fetiches, berlindes, abóbadas de cristal donde a neve cai silenciosamente. Isto teve um tempo, teve lugares para se viver, velhas salas de encontros cúmplices, festivais, cinematecas, refúgios, fotografias coladas na parede, cartazes, Johnny Guitars e Gertruds da nossa vida, imperatrizes orientais de unhas lacadas a vermelho, nosferatus do espanto, monstros de terror.
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Depois, o cinema começou a ser outra coisa, e iniciou uma deriva: por um lado, entrou nas exposições, nos palcos de teatro, nas cenas de dança, nos vídeos, nas televisões; mas por outro, regressou ao seu estatuto de mera indústria, de cabide para produtos derivados, de produção de entretenimentos leves e fáceis de esquecer, envolvidos em pipocas e luzes psicadélicas.
No entanto… Noutro dia, ao fim da noite, iniciei uma dessas rondas de «zapping» televisivo, à procura sabe-se lá de quê, e de súbito a imagem aparece. Havia imagens antes, às dúzias, mas não havia «a imagem». A imagem: era um homem que incendiava uma casa junto ao mar, e depois corria desvairadamente à volta, corria e voltava a correr, e corria ainda, e ainda, e ainda, e chegavam outros, num carro, que o pretendiam apanhar e ele corria mais, corria sem ter para onde correr, corria para ficar longe de si mesmo, no desespero de quem se enrodilha na própria sombra, e por fim, havia uma árvore, e uma criança serena que lia debaixo da árvore, e era a paz depois do incêndio. Olhei e senti: esta é a terra do cinema, aquela que eu amei tantas vezes (às vezes de mãos dadas). Percebia-se pelo tempo absurdo das imagens que eram imagens não para serem vistas mas para serem vividas. Tratava-se de um filme feito por um homem que ia morrer: Tarkowski, «O Sacrifício».
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Depois, o cinema começou a ser outra coisa, e iniciou uma deriva: por um lado, entrou nas exposições, nos palcos de teatro, nas cenas de dança, nos vídeos, nas televisões; mas por outro, regressou ao seu estatuto de mera indústria, de cabide para produtos derivados, de produção de entretenimentos leves e fáceis de esquecer, envolvidos em pipocas e luzes psicadélicas.
No entanto… Noutro dia, ao fim da noite, iniciei uma dessas rondas de «zapping» televisivo, à procura sabe-se lá de quê, e de súbito a imagem aparece. Havia imagens antes, às dúzias, mas não havia «a imagem». A imagem: era um homem que incendiava uma casa junto ao mar, e depois corria desvairadamente à volta, corria e voltava a correr, e corria ainda, e ainda, e ainda, e chegavam outros, num carro, que o pretendiam apanhar e ele corria mais, corria sem ter para onde correr, corria para ficar longe de si mesmo, no desespero de quem se enrodilha na própria sombra, e por fim, havia uma árvore, e uma criança serena que lia debaixo da árvore, e era a paz depois do incêndio. Olhei e senti: esta é a terra do cinema, aquela que eu amei tantas vezes (às vezes de mãos dadas). Percebia-se pelo tempo absurdo das imagens que eram imagens não para serem vistas mas para serem vividas. Tratava-se de um filme feito por um homem que ia morrer: Tarkowski, «O Sacrifício».
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[Eduardo Prado Coelho, in Crónicas no Fio do Horizonte, Asa, 2004]
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