Ítalo Calvino dizia que os “clássicos” são obras em que “toda a releitura é uma primeira leitura”. E ainda: são obras que “nunca acabam de dizer o que têm a dizer”. Por isso voltamos sempre aos “clássicos”, neste caso a Charles Chaplin, “um caso único” na história do cinema. Chaplin ainda tem muito para nos dizer. Nestes tempos cada dia mais modernos que hoje vivemos.
«O cinema dá o que a vida rouba» : Foi Chaplin que atirou a primeira pedra. Uma montra imensa estilhaça-se em Atenas, um paralelepípedo da calçada parte a janela de um ministério e é ainda a mão de Chaplin que a lança. A primeira pedra foi em ‘The Kid’. Treinada por Chaplin, a mão do garoto parece tão infalível como a funda de David e os vidros das janelas dos bairros tombam como Golias. ‘The Kid’ evocava tempos de miséria, o inexaurível filão da infância do próprio Chaplin. Anos depois, em ‘Modern Times’ volta, vadio outra vez, o mais tramp dos operários, para caricaturar a moderna sociedade industrial, então em ciclo de galopante desemprego e fome. Na sequência em que Charlot e a rapariga (Paulette Goddard) ficam uma noite naquela espécie de centro comercial: as pedras de Atenas saíram das mãos de Chaplin, os ‘ocupas’ de Wall Street devem-lhe a sequência inspirada dessa noite de sonho.
TEMPOS MODERNOS / Modern Times
Charles Chaplin (1936)
O drama de Charlot no mundo que o cerca nunca fora expresso com uma tão trágica violência. Noutros tempos conseguia sempre, graças a expedientes de toda a espécie, ficar à margem de uma sociedade com a qual não tem nada em comum.
Por que cruel destino reencontramos, no início de TEMPOS MODERNOS, este insubordinado metido nos eixos?
Charlot é operário numa fábrica. O eterno insubmisso tornou-se um dos elos da engrenagem que é preciso seguir com docilidade de escravo. Mas Charlot está a mais num universo tão bem organizado. Abandona o lugar, obcecado pelos gestos automáticos que executa de manhã à noite.
O que ele defende com tanta valentia em TEMPOS MODERNOS é a dignidade do homem. O que exprime com tanta acuidade é o seu rancor contra a vida mecanizada, contra o progresso material, que faz do indivíduo o escravo das máquinas. Num estudo consagrado ao filme, Robert Cohen-Tanugri aproxima, com razão, de TEMPOS MODERNOS esta passagem da homilia de O Grande Ditador : “Não se entreguem a estes homens-máquinas de corações mecânicos”, acentuando este traço dominante: uma recusa em desvalorizar o homem.
Ao longo de todo o filme, com uma teimosia, uma energia e um optimismo que em Chaplin nunca tinham sido tão vivos, Charlot vai esforçar-se por fugir à lei da comunidade, vai esforçar-se por não se dissolver na massa anónima. Ele será o grão de areia que chega para encravar um mecanismo bem organizado de mais. Charlot não é o revolucionário, é o revoltado. Defende a sua dignidade humana dos gestos mecânicos da autoridade do chefe, da violência da lei e das servidões provocadas pela máquina. E com que nobreza!
Às promessas de bem-estar material preferirá sempre, porque é um poeta e porque é livre, a miséria e a fome, mas também os devaneios tranquilos, a erva dos taludes, a incerteza de um amanhã que permite todas as esperanças. Chaplin tem demasiada lucidez para servir uma causa, qualquer que ela seja. Se é certo que alguns querem fazê-lo entrar nas suas fileiras, podemos estar seguros de que o encontramos nelas como Charlot no cortejo dos grevistas: sem que ele faça nada por isso.»
Nenhum comentário:
Postar um comentário