O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

segunda-feira, 27 de maio de 2013

POEMAS DE GOLGONA ANGHEL



Aos Sábados repousava:
instalava-me no lugar mais cómodo
da minha cultura ocidental,
de cachimbo num quadro de época,
e levantava com o olhar
as rolas passeabundas da marquise.

Nos intervalos,
cultivava em pequenos parágrafos,
ao lado de couves-flor à sombra dum ginjal,
a história universal
do jeito como andas pela sala,
Adélia, Rosa-Maria, Lulú,
toda feita de rendas, toda gazes e veludos,
toda cheia de recantos africanos,
penas e cheiros, paisagens com garrafas,
pretos e pelicanos,
savanas e leopardos, minas gerais,
anéis e diamantes,
casas de campo em Vigo, Barcelona, Abrantes,
toda feita contas em dólares nos bancos da Suíça,
vistos para Estados Unidos,
minha fufa, minha farofa com linguiça,
toda Armani,
toda Gucci,
toda despida nos filmes de Mizoguchi.
À mesma hora,
na sala de microfilmes da Torre do Tombo,
uma turma de dez alunos curiosos
desfia o pergaminho do meu cancioneiro pessoal
num aparato crítico fundamental:
Filho de mãe incógnita,
fruto de um amor irregular,
(toma nota e vê lá se aprendes):
Carlos Fradique Mendes.

***
Não me interessa o que
dizem os dissidentes da ditadura.
Mas confesso que gostava dos chocolates Toblerone
que a minha tia me trazia no Natal.

Não acredito nos detidos políticos,
nem me impressionam os miúdos descalços
que mostram os dentes para as máquinas Minolta
dos turistas italianos.

Não vou pedir asilo.
Desconheço os avanços
ou retrocessos económicos do meu país.
Já falei de Drácula que chegue.
Já apanhei morangos na Andaluzia.
Já fui cigana, já fui puta.
Escusam de mo perguntar outra vez.

O que me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante
para o fim da história – é saber
quando é que me transformei,
eu que era uma loba solitária,
neste caniche de apartamento que vos fala agora?

***
Abro a porta.
Olho constantemente para o mapa
mas já não me lembro para onde queria ir.
Podia ficar aqui,
enquanto a noite respira nas janelas embaciadas.
Os móveis apagam-me os passos
em ângulos cegos
e, nessas sombras do incerto,
deixo que o cansaço me tire a peruca da paciência
assim como a noite nos tira a roupa
antes de dormir.

Isolado num cantinho da boca entreaberta,
o teu sorriso
vai contribuindo para o genocídio dos camarões
que o vinho branco torna sempre menos sangrento.
Poderia, de facto, ficar aqui
enquanto desapareces, por fim, num sono sem importância.

Vou esvaziando os copos
e começo a compilar beijos,
como quem junta, à pressa, moedas caídas pelo chão:
somos todas putas, rapaz,
com ou sem vodka.

***
Vim porque me pagavam,
e eu queria comprar o futuro a prestações.

Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos da Páscoa e pulseiras
de lata.

A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quantos mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficaram na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto.

Com estas mãos levantei a poeira
com que agora cubro os nossos corpos.

Com estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.

Alguém se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como regressar a casa;
e que bonito me fica a esperança
enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória.

[in Vim porque me pagavam, Mariposa Azual, 2011]

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