Aos
Sábados repousava:
instalava-me no lugar mais
cómodo
da minha cultura ocidental,
de cachimbo num quadro de
época,
e levantava com o olhar
as rolas passeabundas da
marquise.
Nos
intervalos,
cultivava em pequenos
parágrafos,
ao lado de couves-flor à
sombra dum ginjal,
a história universal
do jeito como andas pela
sala,
Adélia, Rosa-Maria, Lulú,
toda feita de rendas, toda
gazes e veludos,
toda cheia de recantos
africanos,
penas e cheiros, paisagens
com garrafas,
pretos e pelicanos,
savanas e leopardos, minas
gerais,
anéis e diamantes,
casas de campo em Vigo,
Barcelona, Abrantes,
toda feita contas em dólares
nos bancos da Suíça,
vistos para Estados Unidos,
minha fufa, minha farofa com
linguiça,
toda Armani,
toda Gucci,
toda despida nos filmes de
Mizoguchi.
À mesma hora,
na sala de microfilmes da
Torre do Tombo,
uma turma de dez alunos
curiosos
desfia o pergaminho do meu
cancioneiro pessoal
num aparato crítico
fundamental:
Filho de mãe incógnita,
fruto de um amor irregular,
(toma nota e vê lá se
aprendes):
Carlos Fradique Mendes.
***
Não me
interessa o que
dizem os dissidentes da
ditadura.
Mas confesso que gostava dos
chocolates Toblerone
que a minha tia me trazia no
Natal.
Não
acredito nos detidos políticos,
nem me impressionam os miúdos descalços
que mostram os dentes para as máquinas Minolta
dos turistas italianos.
Não vou
pedir asilo.
Desconheço os avanços
ou retrocessos económicos do meu país.
Já falei de Drácula que chegue.
Já apanhei morangos na Andaluzia.
Já fui cigana, já fui puta.
Escusam de mo perguntar outra vez.
O que
me preocupa – e isso, sim, pode ser relevante
para o fim da história – é
saber
quando é que me transformei,
eu que era uma loba
solitária,
neste caniche de apartamento
que vos fala agora?
***
Abro a
porta.
Olho constantemente para o
mapa
mas já não me lembro para
onde queria ir.
Podia ficar aqui,
enquanto a noite respira nas
janelas embaciadas.
Os móveis apagam-me os
passos
em ângulos cegos
e, nessas sombras do
incerto,
deixo que o cansaço me tire
a peruca da paciência
assim como a noite nos tira
a roupa
antes de dormir.
Isolado
num cantinho da boca entreaberta,
o teu sorriso
vai contribuindo para o genocídio dos camarões
que o vinho branco torna sempre menos sangrento.
Poderia, de facto, ficar aqui
enquanto desapareces, por fim, num sono sem importância.
Vou
esvaziando os copos
e começo a compilar beijos,
como quem junta, à pressa,
moedas caídas pelo chão:
somos todas putas, rapaz,
com ou sem vodka.
***
Vim
porque me pagavam,
e eu queria comprar o futuro
a prestações.
Vim
porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos da Páscoa e pulseiras
de lata.
A
bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quantos mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficaram na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto.
Com
estas mãos levantei a poeira
com que agora cubro os nossos corpos.
Com
estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.
Alguém
se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como
regressar a casa;
e que bonito me fica a
esperança
enquanto apresento em
directo
a autópsia da minha glória.
[in Vim
porque me pagavam, Mariposa Azual, 2011]
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