O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós.
JEAN-PAUL SARTRE

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

NAWAL AL SAADAWI – A EGÍPCIA QUE MEXEU NOS TABUS


Com seis anos cortaram-lhe o clítoris. O combate da sua vida foi travado contra a mutilação genital. Tornou-se uma referência dos direitos das mulheres árabes. Sadat meteu-a na prisão. Os fundamentalistas condenaram-na à morte. Infelizmente esta prática ainda continua, mesmo às ocultas nos países ocidentais, para onde apologistas desta barbaridade emigraram.

No livro «The Hidden Face of Eve (1977), edição inglesa da Zed Books, Nawal descreve toda a saga que passou.

Foi naquele momento antes do sono que já tem algo de sonho. Sentiu qualquer coisa a mexer-lhe debaixo dos cobertores. Uma mão agarrou-a outra tapou-lhe a boca. «Levaram-me para a casa de banho. Não sabia quantos eram, nem me lembro das caras, mulheres ou homens. O mundo parecia envolto num nevoeiro negro que me impedia de ver. Ou talvez me tenham posto uma espécie de venda sobre os olhos».

Lembra-se do «toque gelado dos mosaicos da casa de banho» quando a deitaram no chão, de «vozes desconhecidas e de murmúrios interrompidos aqui e ali por um som de metal a raspar que parecia o do carniceiro quando afia a faca antes de degolar um carneiro».

Pensou que uns ladrões tinham entrado em casa. «Preparavam-se para me cortar a garganta. Que era o que sempre acontecia às raparigas desobedientes como eu nas histórias que a minha avó da aldeia gostava de me contar».

Então o som de metal a raspar parou e ela sentiu que se aproximava, mas não da garganta. «Algures abaixo da barriga, como se estivesse à procura de qualquer coisa escondida entre as minhas coxas». Abriram-lhe as pernas o mais possível e mantiveram-nas seguras.

«Subitamente, a lâmina afiada pareceu cair entre as minhas coxas e cortou um pedaço de carne do meu corpo. Gritei de dor apesar da mão firme na minha boca, porque a dor não era apenas uma dor, era com um ferro em brasa que percorria o meu corpo todo. Ao fim de alguns momentos, vi uma poça de sangue à volta das minhas ancas. Não sabia o que tinham cortado do meu corpo, nem tentei descobrir. Apenas chorei e gritei pela minha mãe. O choque mais brutal foi quando olhei em volta e a vi em pé, a meu lado.»

É assim que a egípcia Nawal Al Saadawi conta, como aos seis anos lhe cortaram o clítoris. Depois foi a sua irmã mais nova do que ela dois anos, a sofrer essa mutilação.

A mutilação genital feminina (que geralmente se faz na infância, antes da idade menstrual) não é uma tradição dos países árabes nem do universo islâmico – o Corão não a advoga. A sua prevalência, com origens no Egipto dos faraós, é sobretudo conhecida no Norte e Oriente de África e em partes da Ásia muçulmana, Egipto, Sudão, Iémen, alguns estados do golfo, Etiópia, Quénia, Tanzânia, Gana, Guiné, Nigéria, Sri Lanka, Indonésia e mesmo partes da América Latina, são as zonas em que Nawal Saadawi situa a prática da excisão feminina.

Foi por abordar um conjunto vasto de problemas – não apenas este – que o livro «The Hidden Face of Eve», se tornou um marco nos estudos sobre o mundo árabe.

Nawal Saadawi depois de se formar em medicina em 1956, foi trabalhar para a zona da aldeia onde nasceu, Kafr Tahla, no delta do Nilo: «Aí, com muita frequência, tive que tratar jovens que chegavam ao hospital a sangrar profusamente depois de uma excisão. Muitas perdiam a vida por causa da forma inumana e primitiva como a operação, já suficientemente selvagem em si, era feita. Outras foram afectadas por infecções agudas das quais por vezes vinham a sofrer toda a vida.»

Entre estas jovens, havia também as que vinham do Sudão, o grande vizinho do sul. «Fiquei horrorizada ao perceber que as sudanesas são sujeitas a uma circuncisão, muito mais cruel que as egípcias. No Egito só o clítoris é amputado, e, geralmente, não por completo. No Sudão, a operação consiste na remoção integral de todos os órgãos genitais externos. Cortam o clítoris, os grandes lábios e os pequenos lábios da vagina. Depois a ferida é cozida.» Fica apenas uma pequena abertura para a saída de urina e fluxo menstrual. «O resultado é que na noite do casamento é necessário alargar a abertura cortando um ou ambos os extremos com uma lâmina para que o órgão masculino se possa introduzir». Quando uma mulher sudanesa fica divorciada, a abertura é de novo reduzida.

Tudo isto tem sido exposto regularmente, no entanto vai acontecendo, não só as famílias iletradas insistem em manter o costume, como mesmo as mais cultas. É visto como forma boa para a saúde, que beneficia a limpeza e a «pureza». Na linguagem comum do povo, esta operação é chamada de «limpeza ou purificação».

Saadawi , opõe-se a que seja destacada a sua história pessoal sem o contexto social e político. Faz a denúncia da mutilação genital feminina à luz de um quadro mais amplo, o de uma sociedade patriarcal altamente repressiva, em que, por exemplo, a obsessão com a virgindade feminina é uma forma de domínio. Numa família árabe, o hímen é considerado muito mais valioso do que um olho, um braço ou uma perna. Aliás, «se uma rapariga perde a vida, isso é uma catástrofe menor do que se perdesse o hímen».

Especialmente no Sul do Egito, escreve Saddawi, «os rituais de casamento exigem que a defloração seja praticada pelo marido, com o dedo, e que o sangue manche o lençol branco». Como muito poucas pessoas entendem que o hímen varia de textura, tamanho e consistência de uma jovem para outra, a ausência de sangue pode levar ao repúdio ou mesmo à morte da jovem.

Em determinadas zonas, esta penetração é feita não pelo marido mas por uma «daya» (parteira), que junta ao seu ganha pão os cortes de clítoris e as deflorações. «Durante os meus anos no Egito rural, inúmeras foram as noites que passei ao lado de jovens, numa pequena casa de aldeia ou de lama, a tratar hemorragias causadas pela longa unha suja de uma «daya» que cortara os tecidos durante o processo de defloração». Tem de haver sangue para mostrar. «O pai da noiva levanta então o pano branco manchado de sangue e agita-o orgulhosamente acima da cabeça para os parentes reunidos serem testemunhas de que a honra da sua filha e da família está intacta.» Para a «daya» se conseguisse um abundante fluxo, assegurava-lhe popularidade e um rendimento firme.

A mera suspeita da perda da virgindade justifica os chamados «crimes de honra» - um pai, um irmão, um primo limpam a honra familiar matando a jovem (por vezes o suposto parceiro) , que muitas vezes têm penas suspensas ou nem sequer vão a tribunal.

Há esquemas a que as famílias por vezes recorrem, famílias ricas vão a um ginecologista para que o hímen seja reconstituído, se as famílias são pobres, podem comprar os subterfúgios da «daya», que pode marcar o casamento para a altura da menstruação ou colocar um pequeno saco com sangue de galinha na entrada da vagina.

A mutilação genital feminina foi proibida em 1997, com bastante polémica, mas a operação continua a ser feita, é difícil lutar contra uma prática muito enraizada, Não só a lei, é preciso educação, infelizmente o sistema não educa em relação a algo que considera um tabu. Muita gente paga a médicos para fazer a excisão clandestinamente.

Saadawi contesta a mutilação genital, mas também a circuncisão do pénis. Contesta o fundamentalismo religioso e não excluiu religiões: islâmica, cristã, judaica, hindu, budista… Cita uma frase do pai: «Se o preço que pagamos pela liberdade é alto, mais alto é o preço que pagamos se aceitarmos ser escravos».

Nawal Al Saadawi, nasceu numa família da classe média. O pai era funcionário do Ministério da Educação. Passou a infância entre a aldeia e a cidade. Ela e os seus oito irmãos tiveram acesso à universidade.

Casou três vezes e nos seus divórcios teve a família ao seu lado. Do primeiro marido teve uma filha, Mona Helmy, escritora e do último com Sherif Hetata, médico e escritor, que passou 14 anos na prisão, acusado de ser comunista, um filho, Atef Hetata, realizador de cinema.

Saadawi, depois de trabalhou na sua aldeia, chegou a directora-geral de Saúde e fez um mestrado em Saúde Pública na Universidade da Columbia (EUA). Foi demitida depois de publicar o ensaio «Women and Sex», a partir das suas experiências médicas na zona rural.

Estudou depois psiquiatria e investigou a neurose em 20 mulheres presas ou hospitalizadas, escrevendo o ensaio «Women at Point Zero» e depois «The Hidden Face of Eve».

Pelas críticas feitas ao governo de Sadat, foi presa em 1981, mas passado um mês Sadat foi assassinado por fundamentalistas islâmicos e foi libertada.

No ano seguinte criou a AWSA (Arab Women’s Solidarity Association), que esteve banida entre 1991 e 1996, por ter contestado o envolvimento americano na Guerra do Golfo. Hoje em dia esta organização tem delegações em vários países e milhares de ativistas, uma das suas lutas é contra os «crimes de honra».

Em 1992 o nome de Nawal apareceu numa lista de alvos a abater pelos fundamentalistas islâmicos e decidiu ir para os EUA dar aulas, durante cinco anos. Defende as pessoas americanas, considerando que o pior são os governos.

Regressou ao Egito em 1997, quando o governo diminuiu o poder militar dos fundamentalistas, também era no seu país que queria estar, porque a sua luta só fazia sentido aí.

Em 2001, um advogado fundamentalista, tentou que Nawal se divorciasse do seu marido, seu inseparável companheiro de 40 anos, alegando que ela ofendera o Islão ao dizer numa entrevista, que a peregrinação a Meca, um dos cinco pilares islâmicos, tinha vestígios pagãos e ao pôr em causa a desigualdade das heranças para as mulheres. O advogado baseava-se na «hisba», uma cláusula da lei islâmica que admite separar à força o «ofensor» do seu conjugue muçulmano. O processo foi notícia em todo o mundo, com Emma Bobino a encabeçar movimentos de defesa de Nawal e seu marido, o advogado não conseguiu levar a dele avante.

Nawal, dizia que a peregrinação não era obrigatória e que os pobres deviam alimentar e educar os seus filhos, mas a situação era ao contrário, porque mais importante era ir a Meca, beijar a pedra preta. Foi a primeira pessoa a criticar a peregrinação, foi um choque e o que diziam é que devia ser decapitada.

Nawal traçou na altura um retrato duro do país: «Vemos as pessoas pela rua, e estão exaustas. Trabalham até ao limite só para alimentar as crianças, só para viver e vivem como animais, em casas muito más, com comida muito má. Há muitos desempregados e os pobres são tratados como escravos pelo Governo. As pessoas têm medo de falar. Dizem «com a vontade de Alá», «pela vontade de Alá», falam de Deus o tempo todo. Deus é o único refúgio. Não confiam nem em ninguém, nem no governo. Toda a gente engana toda a gente. As mulheres são maltratadas, porque são vulneráveis, quando há crise são as primeiras a pagar o preço, as primeiras a serem despedidas. Os jovens e os homens juntam-se aos grupos fundamentalistas porque pensam que eles os vão salvar, que Deus os vai salvar.»

Nawal Al Saadawi, recebeu um prémio internacional do governo da Catalunha de 80 mil euros por «contribuição para o desenvolvimento dos valores culturais, científicos e humanos no mundo».

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